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SAÚDE| 07.04.2021

María Neira: “Se há empresas como a MAPFRE que se oferecem para ajudar na vacinação, é preciso aceitar esses recursos”

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Por ocasião do Dia Mundial da Saúde, um ano após a declaração da pandemia da Covid-19, entrevistamos por videoconferência María Neira, diretora do Departamento de Saúde Pública e Meio Ambiente da Organização Mundial da Saúde (OMS) a respeito da crise em que vivemos, dos obstáculos e desafios futuros, como a proteção da solidariedade e da saúde frente às mudanças climáticas e o combate às desigualdades. Também sobre a oferta do presidente da MAPFRE de contribuir com recursos para agilizar o processo de vacinação.

Qual é o balanço da situação? Onde estão centradas as preocupações da OMS neste momento?

As consequências desta epidemia são devastadoras, tanto ao nível da saúde, como social e econômico, pelo retrocesso nas conquistas que foram alcançadas em termos de pobreza, educação ou direitos humanos. Isso é, para nós, uma preocupação muito grande. O equilíbrio é que é preciso ter uma saúde pública universal e gratuita; é necessário ter uma preparação de resposta adequada diante de epidemias; é necessário dispor de profissionais de saúde bem formados e protegidos; a solidariedade internacional deve funcionar, que serve de base para a solidariedade científica; que tudo pode ser melhorado e precisaremos ver não somente como nos preparamos para uma emergência, mas o que nos trouxe até aqui. E quais são as causas[i] e como podemos reduzi-las? É evidente que nunca teremos risco zero, mas precisamos analisar o que podemos fazer para diminuir, tanto quanto possível, a vulnerabilidade do ser humano, da nossa saúde. Penso que muitas destas questões já foram identificadas.

Você coordena uma área que vincula saúde pública e meio ambiente. O que pode nos dizer a respeito da associação entre a destruição da natureza e a irrupção de vírus letais, como o SARS-Cov2 ou o Ebola? Você vê uma maior consciência da necessidade de proteger nosso meio ambiente e cumprir com os objetivos da Cúpula de Paris, agora que a Covid-19 nos fez repensar na forma como vivemos?

Acredito que não é mais uma questão de tomar consciência, mas de acelerar os processos para frear essa destruição, para enviar ao mundo todo a mensagem de que não podemos lutar contra a natureza, porque sairemos perdemos. Isso está evidente, e já tivemos a demonstração com a AIDS: o vírus começou a ser detectado em áreas onde as barreiras à saúde humana e animal foram rompidas. Já tivemos muitos avisos com outras pandemias devido a condições ambientais estressantes que criaram as condições perfeitas, novamente, para o salto do vírus dos animais para os seres humanos. Neste momento vimos que o aquecimento global é a crise que temos sobre a mesa. Assim que pudermos nos livrar da pandemia, teremos de nos concentrar muito mais nela. Não é por acaso que os locais onde ocorreram os casos mais graves de Covid-19 são aqueles onde a população esteve exposta, por muito tempo, à poluição atmosférica e tornou seus pulmões mais vulneráveis, agregando um fator de risco. adicional.

Precisamos recuperar a relação com quem nos dá de comer, beber e respirar, que é o meio ambiente, e agora já não se trata apenas de sensibilização e de educação ambiental: é uma questão de sobrevivência. A próxima urgência será eliminar o plástico que jogamos nos oceanos, porque estamos destruindo-o. Depois de uma colheita, que camponês pensaria em atear álcool, queimar e destruir a terra que o alimenta? Estamos fazendo algo semelhante em todos os processos de produção em andamento.

 

“Precisamos recuperar a relação com quem nos dá de comer,
beber e respirar, que é o meio ambiente”

Sobre o papel dos organismos internacionais e a reinvenção do multilateralismo, é possível que, desde a criação das Nações Unidas, há 75 anos, não tenha havido nenhum momento da verdade tão importante e de risco global como este, exceto as guerras. Vocês estão preparados? Diante do populismo e do egoísmo nacional, por exemplo na corrida pelas vacinas, a resposta deve ser a cooperação e o multilateralismo?

Temos de reinventar isso [multilateralismo], não há dúvidas, e é a resposta. Se não fosse pela cooperação internacional entre o mundo científico, em que todos os cientistas responderam de forma totalmente altruísta aos grupos de trabalho estabelecidos para emitir recomendações científicas baseadas em ciência; se não fosse pela forma como se trocou conhecimentos entre diferentes pesquisadores, entre diferentes clínicos que estavam tratando pacientes, trocando dados, não saberíamos em tempo recorde qual era o tratamento que funcionava melhor.

É evidente que não avançaremos muito se fizermos intervenções em determinado mundo mais rico e deixarmos o outro afogar-se à sua própria sorte. Precisamos dele para manter o vírus sob controle, porque se o mantivermos em outro lugar ele também nos ameaçará, precisamos dele como mercado e, acima de tudo, para viver em um mundo em paz e estabilidade. É claro que se favorecermos uns e não outros, a paz e a estabilidade estarão em perigo, e a violência e a luta pela sobrevivência ressurgirão. Espero que a próxima luta não seja por água, pois é uma daquelas realidades ocultas correndo na sombra, em que alguns compram terras para extrair água. A escassez de recursos hídricos será um problema. Então, é claro, uma cooperação, com letras maiúsculas, uma Organização das Nações Unidas que responda às necessidades e onde se faz política, mas no sentido de cuidar do bem comum.

 

“Não avançaremos muito se fizermos intervenções em determinado mundo mais rico e deixarmos o outro afogar-se à sua própria sorte”

No sentido também de todos por um. Porque a OMS está precisamente alertando para “um problema grotesco no processo de vacinação”.

Sim, era esperável. É um salve-se quem puder, mas pode ser um juntos somos mais fortes. Foi por isso que lançamos o programa COVAX para, pelo menos, destinar alguns recursos a países que não teriam condições de financiar campanhas de vacinação. De certa forma, isso me lembra de quando começamos com os antirretrovirais para a AIDS, quando a tendência era de preços absolutamente absurdos em um tratamento que somente o mundo rico podia pagar, embora também fosse uma conta muito pesada para a saúde. E quando os preços foram negociados, quando o mercado foi aberto (entre aspas), obviamente tudo avançou muito mais e conseguimos reduzir essa prevalência em pessoas, principalmente as mortes por AIDS e os pacientes gravemente enfermos, que também consomem muitos recursos.

Você precisa ser muito estratégico, e a verdade é que proteger a natureza tem muito a ver com proteger a si mesmo, principalmente de forma egoísta, e ser solidário com os outros. Quem não vê o argumento da solidariedade e da igualdade deve receber o argumento do econômico e do risco, e talvez consiga enxergar melhor. Mas seja qual for o argumento usado, precisamos ser solidários, estratégicos, visionários e salvar a todos com algumas lições muito simples aprendidas. De alguma forma, fico chocada quando as pessoas dizem: vamos salvar o planeta. Parece muito arrogante para mim! Não vamos salvar o planeta, teremos que tentar impedir que o planeta nos destrua, e para isso, temos que deixar de fazer tentativas absurdas contra ele. A partir daí, será melhor para todos nós.

Por falar em generosidade, como espanhola, você já deve ter ouvido vozes críticas a respeito dos danos que os confinamentos fizeram à economia e à vida em sociedade. Havia outras saídas? O que funcionou melhor: rastreamento, bolhas, confinamentos limitados a zonas de saúde restritas, máscaras?

Há muito tempo recomendamos cinco medidas cientificamente comprovadas como tendo um impacto. Obviamente, se usarmos todas as cinco ao mesmo tempo, e se usarmos somente uma, e as outras quatro não, precisamos calcular a que risco está se expondo e a que risco está expondo outras pessoas. É claro que de forma racional e proporcional o que funciona melhor é a ventilação, pois sabemos que é onde ocorre a maior transmissão: em espaços fechados, lotados e onde há um contato mais próximo, pois os aerossóis se acumulam e, obviamente, a transmissão é muito mais fácil. Se sabemos que ocorre em determinado local, vamos tomar medidas: vamos aumentar a ventilação, o uso de máscaras e, claro, a higienização das mãos, que considero uma das medidas mais básicas de saúde pública, mas também a mais eficaz e barata. Devemos fazer isso muito espontaneamente; é uma daquelas medidas que chamamos de investimento lógico e bom senso, sem nenhum tipo de arrependimento, porque com certeza funciona. Outro é o gesto de barreira com o braço, dobrar o cotovelo ao espirrar, porque no fundo não é só isso. Vocês, como empresa seguradora, sabem muito bem que até recentemente em um contexto social, antes da pandemia, era aceito que uma pessoa com sintomas de gripe ou resfriado fosse ao escritório trabalhar. E as pessoas ainda se gabavam disso! “Eu me sinto muito mal, mas estou aqui trabalhando”, espirrando, tossindo… A gente encarava isso como algo que merecia reconhecimento e agradecimento. Felizmente, isso não vai mais acontecer, nenhuma pessoa com sintomas de doença infecciosa será considerada um bom trabalhador a ponto de se colocar em um lugar onde possa transmiti-la a outras pessoas. Acho que isso nos beneficiou em termos de transmissão da gripe, que não foi tão forte este ano. São medidas fundamentais. Outros têm menos peso e ainda se gasta muito com eles. Eu recomendaria aqueles cinco, fazer uma avaliação de risco e que cada um de nós trabalhe como um gestor e avaliador de risco. A partir daí, estar ciente do que me arrisco e que tipo de risco eu represento para as outras pessoas.

 

“Não vamos salvar o planeta, teremos que tentar impedir que o planeta nos destrua, e para isso, temos que deixar de fazer tentativas absurdas contra ele. A partir daí, será melhor para todos nós”

O presidente da MAPFRE, Antonio Huertas, lançou um apelo muito claro em fevereiro, oferecendo todos os recursos da empresa para acelerar o processo de vacinação assim que os grupos prioritários tenham sido imunizados. O que essa iniciativa sugere para você e o que você acha da colaboração público-privada em um momento tão crucial?

Eu não tenho nenhuma dúvida. É preciso ter essa colaboração. Se em situações normais já é muito necessário, em situações excepcionais como esta é ainda mais. Confiamos nisso, porque muitas vezes nós, que trabalhamos na saúde pública, tentamos empurrar a agenda, sabemos que o setor privado pode ter muita influência. Trabalhamos muito com o setor privado para, com todo o respeito, influenciar. Uma empresa como a MAPFRE pode promover políticas de prevenção muito importantes, por exemplo: evitar o consumo de tabaco; promover um estilo de vida saudável, com uma alimentação equilibrada e uma parte educativa sobre nutrição; pode proporcionar e promover práticas de um ambiente amigável como o meio ambiente; reduzir a pegada de carbono; realizar práticas corporativas muito mais verdes e sustentáveis… e eu sei que vocês fazem. Reduzir o papel ou o plástico utilizado em processos de embalagens; promover um transporte sustentável para seus colaboradores; facilitar ou informar que não é necessário se deslocar com o veículo próprio etc. Há tantas ideias que o setor público pode implementar, sempre digo que negociaria com todos os setores, incluindo aqueles que produzem alimentos com muitas calorias e um alto índice de açúcares… Dialogar é a única forma de avançarmos juntos, de alguma forma, para criar uma pressão positiva, uma competição positiva. Essa colaboração é fundamental, necessária, estimula a criatividade, gera uma competição positiva entre os diferentes setores e permite-nos, de alguma forma, fazer um acompanhamento, uma observação pública do nível de cumprimento. Vejo muitas vantagens. Obviamente sei que o setor privado tem uma espécie de influência perniciosa, então colocamos todas as barreiras para que não seja assim.

 

“Acredito que podemos vacinar e, efetivamente, conseguir a imunidade da população no verão. Tem de ser considerado como um objetivo, e não aceitar outro cenário”

Pode não nos dar um cenário concreto, mas nos dá um pouco de esperança. Quando você acha que podemos recuperar a normalidade semelhante àquela de que temos lembrança, como tirar as máscaras, abraçar-nos uns aos outros, viajar?

Devemos ser muito positivos, porque, entre outras, coisas precisamos de um objetivo, uma esperança que nos estimule. Do contrário, a próxima pandemia será uma crise de saúde mental e não podemos pagar por isso.

Organizei campanhas de vacinação na África, uma delas, eu me lembro bem, para a cólera em um campo de refugiados, e vacinamos um número incrível de pessoas em três dias. Se conseguirmos fazer isso na África, acredito que podemos vacinar e, efetivamente, conseguir a imunidade da população no verão. Tem de ser considerado como um objetivo, e não aceitar outro cenário: tem de ser esse. Então, se você tiver que agregar meios para acelerar a vacinação, terá que procurá-los. E se não for agora, que as farmacêuticas estão sendo estimuladas a compartilhar parte dessa proteção à propriedade intelectual, a encontrar formas de fazer a transferência de tecnologia, até protegendo seus lucros, é claro, mas de alguma forma acelerando a produção, a transferência de tecnologia e a vacinação. Porque no momento dependemos disso para que todos recuperemos o bem-estar mental e estanquemos esta hemorragia a que todos estamos sujeitos. É preciso agilizar o que for preciso. E se há empresas como a MAPFRE que se oferecem para vacinar e, claro, se há vacinas, você tem que aceitar esses recursos.

 

[1] A entrevista foi realizada dias antes da publicação pela OMS do relatório elaborado pela equipe internacional após sua visita a Wuhan, de 14 de janeiro a 10 de fevereiro de 2021.